Podemos compreender a nossa vida na cidade de São Carlos das mais diversas formas: os lugares que frequentamos, as pessoas que convivemos, as atitudes que promovemos ...
Nessa Carta, procuramos compreender a cidade a partir das conexões de todos esses aspectos: relações entre pessoas, entre grupos e coletivos, entre ações, entre políticas, entre espaços ... O que chamamos de espaços devem ser aqui entendidos, como lugares de promoção do conhecimento, do convívio, do encontro, da saúde, da cultura e das mais diversas experiências.
Ao longo das últimas décadas temos percebido que certas questões têm se tornado mais visíveis e ampliado sua importância, a cidade que desejamos tem tomado forma, de alguma maneira. Tais questões nos fizeram questionar se os modelos e os modos de pensar e planejar estão no caminho certo.
Em especial o ano de 2020 nos colocou à prova e nos levou a refletir mais sobre os modos de vida, como nos apropriamos e percebemos a cidade de São Carlos: como é viver aqui?
No mês de janeiro, as águas urbanas nos mostraram que não podemos mais desconsiderá-las no planejamento e que as soluções, já propostas até o momento, não são suficientes diante do cenário de mudanças climáticas que se coloca para a gestão urbana contemporânea. Podemos ter e, desejamos, que as soluções não sejam apenas canos e reservatórios, mas parques, praças e ruas arborizadas.
No mês de março, nos deparamos com uma situação global jamais imaginada. A pandemia disseminada pelo vírus SARS-CoV-2 (Coronavírus) abalou o planeta, e pôs em questionamento todos os princípios e modelos urbanos e as mais diversas formas de convívio.
Com isso, muitas questões vieram à tona: a fragilidade de nossas economias locais, as desconexões rurais e urbanas, os modelos de expansão e suas relações com a cidade existente, as comunidades de maior vulnerabilidade social, a necessidade de melhorias no saneamento, na mobilidade, na moradia, nos espaços públicos, na educação, na saúde, entre outros aspectos.
Todas essas questões deixam evidente que qualquer proposta de desenvolvimento e planejamento que venha a ser pensada, deve estar articulada às políticas e toda estrutura pública, que precisam ser fortalecidas, melhor estruturadas, conectadas e pensadas sob novas bases. Essas propostas devem estar, também, articuladas com toda a sociedade, debatidas com os coletivos já existentes e com novos agentes públicos e privados.
Desse modo, a Carta Aberta “São Carlos: qual futuro desejamos?” foi estruturada a partir de um conjunto de Princípios e Propostas, que podem fundamentar uma Agenda Comum, que indique ações mais efetivas em diversos âmbitos. A intenção, portanto, é que essa Carta Aberta, fundamentada e desenvolvida num crescente de novas ideias, agregando contribuições diversas e complementares e seja disseminada ao maior número de pessoas.
Princípios
Partimos, de princípios comuns, que são pautados:
_ na priorização das pessoas como centro das políticas urbanas, valorizando o bem viver, em busca do pleno atendimento das funções sociais da cidade.
_ na consideração da participação social como condição necessária às decisões públicas de planejamento e gestão.
_ na articulação entre a geração do conhecimento e a perspectiva de inovação para atendimento pleno das comunidades e da melhoria das condições de vida na cidade, seu ambiente e paisagem.
_ na aproximação de distintas áreas multidisciplinares, dos setores técnicos, com o conhecimento científico e dos diversos agentes que atuam e interferem na produção da cidade. A boa gestão municipal depende de um mosaico de saberes de igual importância e complementaridade.
_ na valorização da paisagem e dos espaços livres de forma sistêmica e em suas diversas escalas: urbana, municipal e regional. Devemos lutar pelo direito à paisagem como um bem coletivo, diante dos seus diferentes significados geográficos e históricos, ambientais e infraestruturais, sociais e culturais.
_ no reconhecimento das cidades como paisagens urbanas que exigem cuidados e ações especiais para que possam cumprir suas funções, acolhendo a população com dignidade, qualidade de vida e respeitando os limites impostos pela natureza.
_ na promoção de políticas públicas, de forma transversal, inclusivas, contínuas e de longo prazo. Políticas que sejam implementadas através de uma gestão municipal que dê protagonismo a igualdade socioespacial e à valorização da vida.
_ na indicação de propostas e soluções que provoquem novas e benéficas conexões entre espaços e grupos na cidade.
_ na inserção da pauta do aquecimento global e das mudanças climáticas, como uma das preocupações cruciais que afetam o desenvolvimento municipal, provocadas pelos efeitos globais e pelas ações humanas locais.
_ na promoção de mudanças de paradigmas que se contrapõem à ideia de que a natureza é inesgotável e o desenvolvimento ilimitado. O ponto de inflexão está na relação entre justiça social, desenvolvimento econômico, ética ambiental e estética urbana, considerando o mundo natural como um valor moral para nossa sociedade.
_ na promoção de uma nova cultura de planejamento, em articulação com as questões atuais, envolvendo um conjunto de agentes e pressupondo a mediação de conflitos e complexidades.
Propostas
Com base nos princípios comuns acima delineados, indicamos um conjunto de propostas, que podem ser pensadas de modo articulado, debatidas e desenvolvidas nos mais diversos espaços de modo que a informação chegue à população e a oportunidade de refletir sobre o futuro seja alicerçado sobre esse diálogo:
Fortalecimento das economias locais e das relações rurais e urbanas
Cada vez mais os espaços rurais e urbanos precisam ser compreendidos a partir de suas complementaridades: suas paisagens são interdependentes e relacionadas. O foco numa visão territorial que considere as diversas escalas deve ser uma perspectiva de planejamento, que se estruture em uma economia circular, com redes locais de produção de alimentos vindos da agricultura familiar, de sistemas agroecológicos, da agricultura urbana e que podem, inclusive, ser articulados às escolas e ações de assistência para famílias em situação de vulnerabilidade social.
Proposição de novas diretrizes e modelos de expansão urbana
Uma das questões mais latentes a ser enfrentada pelo planejamento pós COVID-19, será pensar novos padrões de crescimento e expansão urbana. Exemplos de novos padrões urbanísticos já vêm sendo discutidos e, até mesmo, implementados em diversas cidades pelo mundo. Incremento na vida de bairros, máximo de aproveitamento dos espaços públicos, mais espaços para os pedestres, ampliação de ciclovias, aumento de ventilação e iluminação natural em habitações e edifícios comerciais, são algumas “chaves” desse novo desenho urbano. Essas formas, agora recebendo inovações e atualizações no que diz respeito à cidade de São Carlos, podem ajudar na diminuição da disseminação das doenças, no fortalecimento dos comércios locais, na redução de custos de infraestrutura pública e nos impactos ambientais e sociais.
Ressignificação dos espaços livres como ambientes propícios à saúde
Os espaços livres nas cidades são lugares que proporcionam múltiplos benefícios, físicos e mentais, contribuindo com a saúde pública, evitando doenças e promovendo o bem-estar das pessoas. Um mundo pós pandemia deve, portanto, ao buscar construir cidades mais saudáveis, considerar os elementos naturais e da paisagem como componentes fundamentais do desenho urbano: a infraestrutura verde, o lazer e a saúde se encontram nesse desenho. É estratégico investir na criação e qualificação de praças, parques e conservação de Áreas de Preservação Permanentes (APPs), principalmente as situadas nas Áreas de Proteção e Recuperação dos Mananciais (APREMs). Essas ações vão de encontro às duas ações anteriormente citadas, pois podem incentivar a produção urbana e familiar de alimentos orgânicos ao mesmo tempo em que salvaguardam nossas fontes hídricas. Essa relação entre urbano e rural na produção da chamada Segurança Hídrica e Segurança Alimentar pelos documentos internacionais instala o planejamento e a gestão do Município em nova e contemporânea perspectiva.
Investimentos que articulem saneamento ambiental e saúde pública
A relação entre segurança hídrica e saúde pública também deve se tornar prioridade na cidade, reduzindo as desigualdades no acesso. Isso envolve a defesa de políticas de infraestrutura urbana que garantam uma atuação mais efetiva e mais equânime para a cidade como totalidade, com oferta de serviços de água, esgoto e resíduos sólidos. Iniciativas e empreendimentos solidários precisam ser apoiados, como as cooperativas. O direito à água tratada e a disposição correta da água servida, nesse momento emergencial, também se tornou crucial.
Desenvolvimento de soluções integradas para a drenagem urbana
Soluções convencionais de drenagem urbana são necessárias, porém, não são suficientes. Geralmente, são obras de intervenção em maior porte, e como tal, não têm tido a eficácia esperada. Devem ser pensadas, portanto, novas formas de abordar o sistema de drenagem e o regime pluvial urbano: ao invés de afastar e acelerar o escoamento das águas (canais e condutos) deve-se reter/deter e infiltrar as águas em seus pontos de incidência dentro de uma pluralidade de soluções, promovendo a configuração de uma "cidade porosa" ou "cidade esponja". Isso pode ser feito com uso de infraestruturas verdes, como: pavimentos permeáveis; ampliação de áreas permeáveis (parques, jardins, calçadas, vias e áreas livres); constituição de bacias de estocagem de diferentes portes e concepções, a depender da configuração de solo e relevo; mecanismos para retenção de águas dentro dos lotes (obrigatórios pelo Código de Obras e Edificações); ampliação de incentivos tributários para estimular a população a preservar suas áreas permeáveis e plantar árvores. Sabemos que não há uma solução única e imediata. Isso implica em um conjunto de medidas articuladas envolvendo espaços públicos e privados; planejamento e aplicação de recursos e políticas públicas por meio de projetos e ações a curto, médio e longo prazo.
Investimento na mobilidade ativa
Igualmente contemporânea é a chamada mobilidade ativa, que pressupõe colocar as pessoas no centro do planejamento e da gestão pública. Essa perspectiva fomenta a qualificação dos percursos de pedestres, a ampliação da rede de ciclovias e dos sistemas de transporte coletivo. Todo esse esforço de planejamento se articula a uma rede contínua de espaços livres, composta por eixos caminháveis e cicláveis, associados ao sistema público de praças, parques e ruas arborizadas. O horizonte aqui não é apenas o lazer e a saúde, mas da mobilidade que também leva ao trabalho e à escola. Há aqui uma conexão importante com as universidades da cidade e suas pesquisas, buscando alternativas, como o planejamento com a paisagem e o urbanismo tático, gerando informações, projetos, mudanças e resultados visíveis em pouco tempo.
Realização de planos para moradia e comunidades vulneráveis
As políticas de assentamentos e habitações precárias e o direito à moradia digna precisam ser uma pauta prioritária nesse momento e em sua continuidade. Há que se ter uma visão sensível às desigualdades socioespaciais e contemplar ações de melhorias urbanísticas, habitacionais, sanitárias e de saúde pública, complementarmente às socioeconômicas. Órgãos de planejamento e habitação, saúde e meio ambiente devem trabalhar de forma articulada com movimentos sociais e comunitários. Mais do que repetir o modelo de produção de novos conjuntos habitacionais, distantes e sem infraestrutura, a produção de moradias deve estar vinculada à demanda habitacional efetiva do município. Podendo as assessorias técnicas desempenhar um papel protagonista na promoção de melhorias sanitárias e habitacionais das moradias já existentes. De forma complementar, parcerias podem ser implementadas com vistas à implantação de habitação social em áreas centrais com infraestruturas mais consolidadas.
Criação de Observatórios
Cidades com dados e sistemas de informações bem estruturados se beneficiam de estratégias de prevenção e apoio para as tomadas de decisões. Para isso, as realidades urbanas e suas complexidades necessitam ser amplamente estudadas, mapeadas e divulgadas. A ideia de estruturação de Observatórios pode representar uma medida muito importante na criação de plataformas virtuais e ações de comunicação, permitindo disseminar os conhecimentos sobre a cidade. Contribuem, assim, com um Sistema de Informações Municipais transparente e acessível. Esses Observatórios podem, inclusive, constituir uma rede em âmbito regional e estadual.
Desenvolvimento de Redes e Parcerias
Estabelecer parcerias com instituições públicas e privadas, universidades e demais coletivos para o desenvolvimento conjunto de projetos para melhorias urbanas e regionais, valendo-se do princípio da difusão dos conhecimentos científicos e tecnológicos gerados nessas instituições.
Viabilizar financiamento contínuo das políticas urbanas
Estruturar iniciativas e possibilidades de recursos públicos ou privados de diversas fontes, articulados aos planos e instâncias municipais, estaduais e federais. Aprimorar o planejamento e a gestão dos recursos do Fundo de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Carlos, bem como de outros Fundos existentes, articulando as esferas públicas e privadas em prol dos benefícios para as comunidades e ampliando a participação popular e as possibilidades geração de emprego e renda.
Considerações
Estamos vivenciando uma profunda mudança nas relações sociais urbanas. Esperamos que os discursos do desenvolvimento econômico estejam atrelados a posturas e práticas de ação coletiva e solidária e de garantia de direitos e construção de uma cidade que, ao garantir uma vida justa aas futuras gerações por adotar um modelo sustentável e políticas regenerativas de desenvolvimento e crescimento, se torne modelo nacional. Ironicamente, o distanciamento social uniu pessoas, vizinhos e desconhecidos, das mais diversas faixas etárias e condições sociais. Que esses grupos se fortaleçam, para além da crise, e busquem uma atuação mais coletiva na luta por cidades melhores para todos. Considerando que, em 2021, teremos mudança de gestão para o nosso município e região, esperamos que esse seja o momento propício para acreditarmos que propostas e modelos considerados inovadores sejam, de fato, incorporados ao planejamento e à gestão urbana, para que consolidem mudanças efetivas e sistêmicas, como contraponto aos modelos convencionais, fragmentados e de curto prazo e, também, suplantando lógicas arraigadas na cidade e apresentado esse novo momento, que constrói um futuro comum, exemplar e inédito. É provável que nos próximos anos haja um movimento ainda maior de pessoas e famílias dos grandes centros urbanos para as cidades médias em busca de maior qualidade de vida. Desse modo, São Carlos pode representar uma importante referência para o aprimoramento das suas condições urbanas e rurais em articulação com os contextos regionais. É uma cidade que ainda se coloca como plena de oportunidades, revertendo problemas presentes em soluções a médio e longo prazo, a depender das ações e das políticas que serão discutidas, concebidas e priorizadas. Talvez, o termo “resiliência”, que significa capacidade de adaptação, nunca tenha sido tão adequado. Esta é a hora de São Carlos fazer as escolhas para um futuro mais sustentável e servir de exemplo às mais diversas e complexas realidades brasileiras.
GTPU Grupo de Trabalho de Planejamento dos Parques Urbanos de São Carlos
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